APRESENTAÇÃO DA OBRA
Garcia de Resende (1470? – 1536) nasceu em Évora. Ingressou, em 1490, na corte, como moço de Câmara de D. João II (1481-1495) e foi, mais tarde, seu moço de escrivaninha, cargo que ocupou até à morte do monarca, em 1495. Em 1514 fez parte da faustosa embaixada enviada por D. Manuel I (1495-1521) ao Papa Leão X, na condição de secretário-tesoureiro. Recebeu o título de fidalgo da casa do rei. Em 1516 foi feito escrivão da fazenda do príncipe herdeiro, futuro rei D. João III, o qual serviu durante os primeiros 15 anos do seu reinado. Garcia de Resende gozava de grande prestígio na corte por possuir uma vasta cultura e ser espirituoso, tendo recebido grandes bens pela dedicação com que serviu os três reis. Foi poeta, trovador, historiador, cronista, arquiteto, músico e desenhador. Passou os últimos anos da sua vida nas suas terras em Évora.
Escreveu
Vida e Feitos del Rei D. João II, Cancioneiro Geral (1516), Crónica de D. João II (1545) e Miscelânea e Variedade de Histórias (1554), em redondilhas.
A ideia de
compilar o Cancioneiro Geral
inspira-se no Cancionero General de
Hernandez del Castillo, publicado em 1511. O Cancioneiro Geral consiste numa recolha de material poético, em
língua portuguesa e castelhana, produzido nas cortes de D. Afonso V, D. João II
e D. Manuel. Nele participaram 286 poetas que produziram cerca de 1000
composições (trovas, coplas, glosas, vilancetes, cantigas, poesia de arte
maior), das quais cerca de 10% são em castelhano e quase todas por autores
portugueses.
No Cancioneiro Geral, Garcia de Resende
escreveu o Prólogo dedicado ao
Príncipe D. João, futuro Rei Piedoso, e compôs Trovas à Morte de D. Inês de Castro, sendo, por isso, considerado
por alguns historiadores como o iniciador do ciclo dos Castros. No Prólogo,
Garcia de Resende afirma as razões da sua compilação: fazer perdurar toda a composição
poética do passado, («cousas de folgar e gentilezas»), criticar a morigeração
dos costumes por meio da sátira e estimular os portugueses a escreverem, sobretudo
para preservar a memória dos Descobrimentos. Garcia de Resende afirma: «determinei ajuntar alguas obras que pude haver d’ algus passados e presentes e
ordenar este livro, nam pera por elas mostrar quaes foram e sam, mas pera os
que maes sabem s’ espertarem a folgar de escrever e trazer aa memoria os outros
grandes feitos, nos quais nam sam dino de meter a mão».
No século XV,
à semelhança das grandes cortes europeias, torna-se indispensável ao cortesão saber
compor versos (a arte de trovar) como demonstração de espírito e de cultura. Nos
serões do paço, em torno do rei, recitava-se poemas, muitas vezes sobre temas
banais como as coisas do coração, disputavam-se concursos poéticos, ouvia-se
música, galanteava-se, jogava-se, realizavam-se pequenos espectáculos de
alegorias ou paródias, tentando apurar o estilo, com o objetivo de animar os
serões palacianos. O Cancioneiro Geral
é o reflexo da vida palaciana, pelo seu caráter lúdico, ligeiro e circunstancial
e pelas formas engenhosas, subtis e estilizadas.
No Cancioneiro Geral encontramos o tema do lirismo
amoroso e banal, tradicional, a influência de Petrarca, a sua conceção do amor
desinteressado ou ligado a um objeto inacessível, deliciando-se no sofrimento e
na autocontemplação. Encontramos também influência clássica na construção sintática,
em alusões à mitologia, nas poesias elegíacas, poesias heróicas e na áurea
mediania. Também se discute os problemas da época, como a perda de valores e a
corrupção decorrente da expansão marítima. Há cânticos à Virgem Maria, a Santo
André e temas bíblicos e morais. Também consta a poesia histórica e heróica e a
poesia didática. Nas sátiras criticam-se os costumes, as intrigas da corte,
defendem-se os antigos padrões da nobreza e as vantagens da vida rústica.
O verso é mais
rigorosamente medido no Cancioneiro Geral
do que o verso dos trovadores e surgem novos agrupamentos estróficos. Domina a
redondilha, sobretudo a redondilha maior, «arte menor» ou «arte real». Caíra em
desuso a estrutura paralelística e repetitiva e aparece a glosa, volta (ou
desenvolvimento) de um mote colocado à cabeça da poesia e repetível como
refrão, estrutura de inspiração castelhana, trabalhada com muito engenho e
subtileza pelos poetas. Algumas composições deixam transparecer um emocionante
lirismo, outras uma notável musicalidade (harmonia e ritmo), outras mostram afetação,
outras o jogo de subtileza e o engenho dos poetas.
O
excerto a seguir transcrito, retirado de «Cuidar e sospirar», do Cancioneiro Geral de 1516, pertencente à
Biblioteca Nacional de Portugal, consiste numa longa discussão poética, sob
forma de galanteio, dentro do ambiente palaciano. Dois poetas, Jorge da
Silveira e Nuno Pereira disputam o lugar de melhor amador de uma dama da corte,
Dona Lianor da Silva. O primeiro argumenta que deixa transparecer o seu amor
suspirando e o segundo afirma que abafa o amor dentro do peito, mas que cuida
pela dama. Em coplas alternadas os dois vão defendendo os seus pontos de vista,
demonstrando a sua capacidade silogística e a sua arte de poetar. Intervêm
quase uma dezena de poetas e a discussão da casuística amorosa, muito em moda
nas cortes da época, assume o aspeto de um processo judicial, com veredito
final. A dama toma a sentença a favor do poeta que ama suspirando, mas o
processo sobe ao Tribunal do Deus do Amor que decide finalmente pelo amante que
cuida. Toda esta composição é uma discussão sobre as subtilezas do amor, sendo,
sem dúvida, uma novidade.
CRITÉRIOS DE TRANSCRIÇÃO
Casos em que se mantiveram as formas do original
- As diferentes formas
ortográficas vigentes na época para uma mesma palavra, com reflexo na oralidade.
Ex: pregunta / pergunta ; concrudo / concluda.
- As formas que, sendo próprias
da época, atualmente já não existem. Ex: craro.
- Os ditongos ae, ea,
oe e eo, uma vez que são etimológicos.
- As vogais orais. Ex: pera
; atrebuidos.
- As vogais orais geminadas,
etimológicas ou não. Ex: fee.
- Algumas palavras que não obstam
à compreensão do seu significado. Ex: ja
; sa.
Casos em que se procedeu a alterações
- É introduzida pontuação sempre
que necessária à boa compreensão do texto, respeitando sempre o sentido deste,
a saber: o ponto final <.>, a vírgula <,>, o ponto e vírgula
<;>, os dois pontos <:>, o ponto de interrogação <?>, o ponto
de exclamação <!> e o travessão para introduzir as falas <->.
- Uso de letras iniciais
maiúsculas para os nomes próprios e topónimos.
- Os pequenos traços oblíquos que
aparecem no final de alguns versos foram eliminados.
- A nota tironiana é representada
por <e>.
- Omite-se a cedilha quando
seguida de vogal e ou i.
- Foram introduzidos acentos
agudos em palavras suscetíveis de serem confundidas com homónimas. Ex: nos – nós.
- Foram introduzidos acentos
circunflexos a fim de transparecer a pronúncia de certas formas. Ex: merçe – mercê.
- Foram introduzidos acentos
circunflexos também para facilitar a compreensão de determinadas formas.
Ex: vos irmão acorrermes / em tam
la consultares – vós, irmão,
acorrer-m-ês / entam lá consultarês.
- A separação de algumas palavras
é sujeita ao modelo atual: por vezes é feita a simples separação das palavras, outras
recorre-se ao uso do hífen nas apoclíticas, outras recorre-se ao apóstrofo,
para manter a pronúncia.
Ex: ca motolhe meu cuydado – ca mo
tolhe meu cuidado
ouuyrnos – ouvir-nos.
que lha
damdo – qu’ em lha dando.
- São desenvolvidas as
abreviaturas. Ex: qres – queres ; q – que ; qll – qual ; nº -
nos.
- Os grafemas <i>, <y>
e <j> com valor vocálico ou semivocálico são transcritas por i.
- O grafema <y> com valor
vocálico ou semivocálico é transcrito pela vogal <i>, segundo a norma atual.
Ex: despoys – despois.
- O grafema <u> com valor
consonântico é transcrito por <v>. Ex: uivo – vivo.
- Foi regularizada a forma qua nos casos em que possui um sentido
causal, tendo sido transcrita para ca.
- As consoantes geminadas, em
posição intervocálica, medial ou final são reduzidas a consoante simples. Ex: rrifam – rifam ; pello – pelo ; mall – mal.
- Foram substituídas as consoantes
simples com valor de sibilante surda em posição intervocálica por consoantes
geminadas. Ex: asaz – assaz.
- São reduzidas a uma única
consoante as consoantes em sílaba anterior que não sejam etimológicas nem
interfiram na pronúncia. Ex: consselhado - conselhado.
- São atualizadas formas que não
são etimológicas nem implicam mudanças fonéticas. Ex: desigoaes – desiguaes.
- No caso de formas em que
aparece <gu> seguido de vogal, tendo o <g> valor de oclusiva, foi eliminado o <u>. Ex: diguo
– digo.
- Nas formas em que aparece uma
vogal nasal em sílaba anterior, antes de consoante, a vogal é seguida de
<m> ou <n> . Ex: cuydãdo – cuidando ; ãbos - ambos.
- Em determinadas formas em que
aparece vogal nasal em sílaba final, essa vogal passa a ser seguida de
<m>. Ex: tençã – tençam.
- Em formas em que aparece vogal
seguida de <m> em sílaba anterior, sendo a norma atual vogal seguida de
<n>, procedeu-se à atualização da palavra. Ex: ferymdo – ferindo.
- O grafema <h> não
etimológica não aparece na transcrição. Ex: his – is ; he – é.
- É introduzido o grafema <h> em palavras onde pareceria
estranho a sua não existência.
Ex: onesta – honesta.
- Nos casos em que aparece a
forma ca com sentido relativo (que a), foi regularizada a forma, de
maneira a respeitar o sentido e ser mais facilmente compreendida pelos
leitores.
Ex: saa hy cousa mays sobida: / ca
cousa que se vº chama – s’ haa i
cousa mais sobida / qu’ a cousa que se vos chama.
TRANSCRIÇÃO DE UM EXCERTO DO TEXTO
O cuidar e sospirar
Pregunta que fez Jorge da Silveira a Nuno Pereira porque indo ambos por
uu caminho vinha Nuno Pereira muito cuidoso e Jorge da Silveira doutra parte dando
muitos sospiros, sendo ambos servidores da senhora dona Lianor da Silva.
Pregunta Jorge da Silveira e reposta de Nuno Pereira, tudo neste rifam.
por quem is assi cuidando?
- Por quem vós is sospirando,
senhor Jorge[1] da
Silveira?
Jorge da Silveira.
Nam que eu sospiro indo 2
por quem cuidados me dá
e me vai assi ferindo,
que de todo destroindo
Cuidar é causa primeira,
mas despois d’ eu ir cuidando,
meus sospiros vam dobrando
tá matar à derradeira.
Nuno Pereira.
Ter poder de sospirar 3
assaz é, senhor cunhado,
pera mais desabafar,
mas eu nam tenho lugar,
ca mo tolhe meu cuidado.
Porque é de tal maneira
que por quem eu assi ando
deve d’ andar preguntando:
- Morreo ja Nuno Pereira?
Jorge da Silveira.
Pois vosso cuidar querês 4
esforçar e defender,
e mostrar no que fazês
que moor pena recebês
que sospirar e gemer,
com fee de servir inteira,
a quem nos fere matando
vamos tristes demandando
que julgar isto nos queira.
Nuno Pereira.
Sendo sa mercê contente
5
ca ouvir-nos se encline
serei mais que recontente
que nossa questão presente
ela veja e determine.
E tenhamos nós maneira
d’ irmos petição formando
de tal forma qu’ em lha dando,
ela por nós lho requeira.
De Jorge da Silveira e
de Nuno Pereira, ambos juntamente, em modo de petiçam.
Pois que, senhora, nacestes 6
por dar morte e nunca vida,
pois que ambos nos vencestes
com vosso mal que nos destes
de morte não conhecida,
que no al nos desempare
de todo vossa mercê,
sospirar, cuidar decrare
quem se neles vir ou vê
cuja morte maes se crê.
Desembargo posto nas costas desta petiçam, por mandado da dita senhora.
Se estes competidores 7
querem seguir este feito,
ordenem precuradores
e digam de seu dereito.
De Nuno Pereira em que toma seus precuradores pera ajudarem sua tençam
por parte do cuidado, segundo mandado da dita senhora.
Eu par’ esta altrecação 8
tomo por ajudadores
Joam Gomez e Dom Joam,
qu’ ajudem minha tenção
como meus precuradores;
e façam ser esta cousa
nos amores conhecida:
que quem sospira, repousa,
e u cuidado bem pousa,
nom tem sospiros nem vida.
Jorge da Silueira, em que satisfazendo ao desembargo, toma seus precuradores
por parte do sospirar.
Em cousa de si tam crara 9
escusado era debate,
e eu logo o escusara,
s’ a senhora o julgara,
que me mata que nos mate.
Mas pois vós, senhor, metês
remo d’ ajuda que vogue,
vós, irmão, acorrer-m’-ês,
entam lá consultarês
onde sangue se nam rogue.
Pera o qual vos dou poder, 10
tanto quanto posso dar,
pera por mim requerer,
alegar, contradizer,
consentir e apelar;
por em minh’ alma jurardes,
como quer lá o dereito,
pera meus beens obrigardes,
mas nam pera concertardes
tá ver vitorea do feito.
Segue-se o primeiro rezoado de Dom Joam de Meneses, precurador de Nuno
Pereira, por parte do cuidado contra o sospirar.
Ha ja tanto que nam vivo 11
sem sospiros e cuidados
e sem tanto mal esquivo
que por mim, triste cativo,
bem podereis ser julgados.
Mas a vós, senhor cunhado,
não vos deve d’ ajudar
quem for muito namorado,
que quem morre de cuidado
é-lhe vida sospirar.
E mais irdes preguntando 12
a quem vos nam preguntava
por quem is vós sospirando,
é sinal qu’ em ir cuidando
muito moor paixam levava.
Nam digo ja que falar
foi sinal de pouca pena,
mas da pena qu’ ee cuidar
descanso é sospiros dar
e sa dor é mais pequena.
Os cuidados desiguaes 13
sempre deram mortaes dores;
sospiros nam doem maes,
que quanto sam us sinaes
de quem sente mal d’ amores.
Pelo qual devem de dar
sentença defenetiva
qu’ ee muito mor dor cuidar,
ca quem pode sospirar
inda tem por onde viva.
Sua à senhora Dona
Lianor.
Senhora, pois vedes craro 14
que cuidar tem por conforto
sospiros e por emparo,
nam leixês de desemparo
morrer a quem vinha morto.
Nem julguês por afeiçam
sospiros por moor trestura,
por nam ser contra razão
ò reves em condiçam
do que soes em fremosura.
Rezões de Joam Gomez, precurador de Nuno Pereira, por parte do cuidado
contra o sospirar.
Metem aceso cuidado 15
amores com suas triscas
de pensamento forçado,
com fogo desesperado,
com sospiros sas faiscas.
Cuidado paixam ordena,
cuidado nunca descansa,
cuidado redobra pena,
cuidado nunca s’ amansa,
cuidado sempre tem lena.
Os sospiros e gemidos 16
como faiscas s’ apagam
com descanso dos sentidos
porque sospirando pagam.
Mas u cuidado mui vivo,
nacido no coraçam
do triste amador passivo,
é uu cabo de paixam
qual mais nam sofre cativo.
Quem sofre cuidado tal, 17
sem topar algum remanso,
sofre fadiga mortal
e paixam tam desigual,
que nam dá nenhum descanso.
A pena que é mais fera
na vida de bem amar
cuidado que persevera,
quanto mais se o cuidar
é no que se desespera.
E assi concrudo que 18
o cuidado soo per si
é pena que nam tem sê
nem guarida em qu’ estê,
segundo sempre senti.
O cuidado que concluda
em gemidos e sospiros,
com esperança s’ ajuda,
poes tem descansos a giros
em que seus males remuda.
Sua
à dita senhora.
Dama de grã fremosura,
19
espelho das outras damas,
linda, honesta fegura
dama da melhor ventura,
das que sam e temos famas,
deve vossa senhoria
julgar o crime cuidado
por pena de namorado,
sospiros por fantesia.
Rezões que deu Nuno Pereira em favor de seu cuidado, ajudando seus
precuradores.
Narciso, Mancias morrerão 20
de soo cuidados vencidos!
Oh, quantos ensandecerão
mui sesudos, que perderão
com cuidados seus sentidos!
A que se chama pasmar,
que cousa é esmorecer
senam querer abafar,
sem poder esfolegar?
E sospirar é viver.
Se o dissesse Oriana, 21
e Iseu alegar posso,
diriam[2] quem
se engana,
que sospiros sam oufana,
cuidado, quebranto nosso.
Deriam – Quem alegou
sospiros contra cuidado,
nunca bem se namorou,
ca o que a nós matou
mata todo namorado.
Se os que sam ja finados 22
e que d’ amores morreram
podessem ser perguntados,
diriam que com cuidados
a vida e alma perderam:
a vida em esperando
com cuidados e tristeza,
e alma desesperando,
eles mesmos se matando
com cuidar qu’ ee moor crueza.
O cuidado desbarata 23
todos grandes corações,
e os aperta e os mata
com fantesias que cata
de desvairadas paixões.
Mas ond’ ele anda manso,
que sospiros de si manda
j’ el’ entam em
si abranda,
sospiros vêm por descanso.
Sua a Jorge da Silveira.
Diz-m’ a mim meu coraçam,
24
porque m’ a isto nam calo:
- Pera que vos dou
rezão,
pois vos nam chega paixam
deste cuidado que falo?
Ca se vos ele apertasse
assi como m’ ele aperta
e o vosso assi penasse,
dirieis que se julgasse
o cuidar por morte certa.
Trova sua à dita senhora.
Cuidado de minha vida, 25
vos chamo sempre por nome,
daqui vossa mercê tome
s’ haa i cousa mais sobida
qu’ a cousa que se vos chama
por milhor nome que posso,
ora vede se é vosso
quem de vós mesma brasfama.
Cantiga sua à dita
senhora.
O cuidado mui sentido,
26
donde morte se m’ ordena,
é qu’ havês de ter marido
e eu sempre minha pena.
E naquisto contemprando, 27
vai crecendo desconforto,
que desmaio em cuidando
e caio mil vezes morto
e fora de meu sentido,
com tal morte qual s’ ordena
pera mim ver-vos marido
sem vós verdes minha pena.
Começão as razões por parte do sospirar contra o cuidado e logo Francisco
da Silveira, precurador de seu irmão.
S’ achardes quem bem descarne 28
as raizes do amar,
dir-vos-am que sospirar
é partir alma da carne.
Pois sede bem conselhado,
nam apodês o cuidado
com sospiros que sam morte,
nem ha i quem nos[3]
comporte
senam fino namorado.
Nam vos engane cuidardes 29
que sabeis alegações
nem que valem taes rezões
polas bem aperfiardes.
Porque quem há-de julgar
nam n’ havês vós d’ enganar
nem lhe fazer entender
preto branco parecer,
nem bom vosso aperfiar.
Porque sospirar nam vem 30
senam ja de nam ter vida,
o cuidar cous’ ee sabida
qu’ outros cem mil frutos tem.
De mil cousas vem cuidar
assi com’ ee demandar
morgados e dar libelo,
entam fazer parte delo
pera vir ao contestar.
Nam vos alego passados, 31
ca bem craro é de saber
que com sospiros morrer
é ja certo aos namorados.
Mas alego-vos comigo
que des que amores sigo
sempre neles andei morto:
cuidar trazia conforto,
sospirar morte consigo.
Trova sua à dita senhora.
Se mercê fazer querês
32
em al, seja a meu cunhado
mas vir de maes namorado
sospirar nam lhe tirês.
Ca primeiro vem cuidar
e pós ele o esmaiar,
entam logo o sospiro
que é, senhora, uu tiro
que faz vidas apartar.
Trova sua ao Coudel-moor em que lhe pede ajuda a seu cabo neste feito,
em favor do sospirar.
Por cessar esta conquista
33
sobr’ esta perfia nossa,
compre-nos ajuda vossa
por a cousa ser maes vista.
E por isto, senhor, queira
vossa mercê ter maneira
como nos aqui ajude,
ca visto é que mal concrude
seu cuidar Nuno Pereira.
GLOSSÁRIO
Pág.
|
Estrofe
|
Significados
|
5
|
1.º subtítulo do
poema
|
cuidoso: cuidadoso.
|
5
|
2.º subtítulo do
poema
|
rifam: poema breve e vulgar.
|
5
|
2
|
sospiro indo: vou suspirando.
|
5
|
2
|
tá matar à derradeira: até matar na hora da morte.
|
5
|
3
|
tolhe: 3.ª p. sgl. do verbo tolher (impedir).
|
5
|
4
|
querês: 2.ª p. pl. do v. querer.
|
5
|
4
|
esforçar: provar, enaltecer.
|
5
|
4
|
demandando: gerúndio do v. demandar (pedir).
|
5
|
5
|
ca: conjunção causal, porque.
|
6
|
5
|
recontente : muito contente.
|
6
|
6
|
no al: no resto.
|
6
|
6
|
decrare: do v. decrarar
(declarar, referir, asseverar).
|
6
|
8
|
altrecação : do v. altracar ou altrecar
(discutir, disputar, argumentar).
|
6
|
9
|
crara: fem. de craro (claro, evidente).
|
6
|
10
|
concertardes: 2.ª p. pl. do v. concertar (concertar, estar de acordo).
|
7
|
10
|
tá ver: até haver.
|
7
|
Título da estrofe 11
|
rezoado : arrazoado, alegação de direito,
exposição de razões a favor ou contra, litígio.
|
7
|
14
|
leixês: 2.ª p. pl. do v. leixar (deixar).
|
7
|
14
|
ò reves: o contrário.
|
7
|
15
|
triscas: rixas, brigas.
|
7
|
15
|
lena: alento, vigor.
|
8
|
17
|
remanso : descanso, sossego, tranquilidade.
|
8
|
18
|
concrudo: 1.ª p. sgl. do v. concrudir (concluir).
|
8
|
18
|
sê: assento, repouso.
|
8
|
18
|
qu’ estê: que esteja.
|
8
|
18
|
giros : pl. de giro - giro, trabalho, tarefa.
|
8
|
18
|
remuda : 3.ª p. sgl. de remudar - mudar novamente, tornar a mudar.
|
8
|
20
|
Narciso: filho de uma ninfa, apaixonou-se pela
própria imagem refletida na água, deixando de beber e de comer, morrendo de
consum«ção.
|
8
|
20
|
Mancias: trovador galego do século XV,
símbolo de todos os enamorados, foi morto com uma lança pelo marido da dama a
quem devotamente serviu.
|
8
|
20
|
sesudos: sérios, prudentes.
|
8
|
20
|
esfolegar: tomar fôlego, respirar.
|
8
|
21
|
Oriana: amada de Amadis, o cavaleiro apaixonado
que é protagonista da novela de cavalaria Amadis
de Gaula que corre aventuras pelo «serviço amoroso»
|
8
|
21
|
Iseu: Isolda, amada de Tristão. Isolda e
Tristão são o par de amorosos da Idade Média.
|
8
|
21
|
oufana: por ufania, orgulho, ostentação.
|
9
|
23
|
j’ el’ entam: já ele então.
|
9
|
25
|
s’ haa: se há.
|
9
|
25
|
sobida: alto, sublime, excessivo, pomposo.
|
9
|
25
|
brasfama : do v. brasfemar (blasfemar, dizer mal de alguma coisa, insultar).
|
9
|
27
|
naquisto : nisto.
|
9
|
27
|
contemprando : gerúndio do v. contemprar (contemplar, observar atentamente, meditar).
|
9
|
28
|
descarne : 3.ª p. sgl. do v. descarnar (tirar, separar, apartar).
|
10
|
28
|
apodês : 2.ª p. pl. do v. apodar (dirigir apodes, zombar, alcunhar).
|
10
|
29
|
aperfiar : aporfiar, lutar, combater, insistir,
teimar.
|
10
|
30
|
libelo: exposição
articulada do que se pretende provar contra um réu, acusação.
|
BIBLIOGRAFIA
Antologia do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, selecção, organização, introdução e notas
por Maria Ema Tarracha Ferreira, Ulisseia, s/l, 1994.
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, apresentação crítica,
selecção, notas, glossário e sugestões para análise literária de Cristina
Almeida Ribeiro, Editorial Comunicação, Lisboa, 1993.
Cancioneiro Geral
de Garcia de Resende, fixação de texto e estudo por Aida Fernanda Dias,
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1990.
Garcia de
Resende e o Cancioneiro Geral, introdução
e notas de Andrée Crabbé Rocha, Lisboa, Centro do livro brasileiro,
1973.
RESENDE,
Garcia de, Cancioneiro geral : cum
preuilegio, impresso por Hermã de Campos, Lisboa, 28 Setembro 1516.
SARAIVA, António José e Óscar
Lopes, História da Literatura Portuguesa, 17.ª ed., Porto Editora,
Porto, 1996.
Sem comentários:
Enviar um comentário